Há dez anos, a sociedade brasileira passou a contar com uma lei específica para os casos de violência doméstica e familiar contra a mulher – norma que, em 2012, foi julgada pelo Supremo Tribunal Federal (STF), que balizou o alcance da legislação e pacificou em sua jurisprudência o entendimento a ser aplicado pelo Poder Judiciário. Conhecida como Lei Maria da Penha, a Lei federal 11.340/2006, de 7 de agosto de 2006, representa um avanço na legislação visando a erradicação, prevenção e punição da violência contra a mulher, além de garantir mecanismos de proteção das vítimas que sofrem violência física e psicológica de pessoas com as quais convivem ou se relacionam.
A lei leva o nome de uma mulher que durante 23 anos sofreu maus tratos, agressões físicas e morais e duas tentativas de homicídio – uma com um tiro pelas costas, que a deixou paraplégica, e outra quando quase foi eletrocutada em uma banheira – praticadas pelo marido e pai de suas filhas. Isso tudo ocorreu há mais de 30 anos e, desde então, a farmacêutica cearense Maria da Penha Maia Fernandes, 71 anos, milita em favor dos direitos das mulheres.
A morosidade para a solução do caso levou Maria da Penha a denunciar o Brasil perante a Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA), competente para julgar casos de violação aos direitos humanos ocorridos em países integrantes da organização. Em 2001, a Comissão responsabilizou o país por omissão e negligência no que diz respeito à violência doméstica. A OEA recomendou ao Brasil que tomasse medidas em prol da criação de políticas públicas que inibissem as agressões no âmbito doméstico em desfavor das mulheres. Foram 19 anos para a condenação do agressor, e a repercussão do caso levou à aprovação da Lei 11.340/2006, retirando a violência contra as mulheres da esfera particular para a dimensão de Estado.
A lei detalha as formas de violência doméstica e familiar contra a mulher, que engloba a violência física, psicológica, sexual, patrimonial e moral, prevê medidas protetivas de urgência visando garantir a segurança da vítima, como o afastamento do agressor do local de convivência e a fixação de limite mínimo de distância, permite a prisão preventiva do agressor e aumenta as penas para os casos de lesões corporais praticadas no âmbito doméstico contra a mulher. Além disso, garante a criação de Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, a construção de casas-abrigo para mulheres e dependentes menores, a inclusão das vítimas em programas sociais, a prioridade para transferência de cidade caso seja servidora pública ou a estabilidade de seis meses para afastamento do trabalho caso seja da iniciativa privada.
Controle de constitucionalidade
Com a entrada em vigor da Lei Maria da Penha 45 dias após sua publicação, começaram a chegar à Justiça processos relacionados à regra então estabelecida, e surgiram também interpretações divergentes dos magistrados quanto à sua aplicação. A análise da norma chegou ao STF por meio de duas ações de controle concentrado de constitucionalidade – Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC) 19 e Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 4424, julgadas em 9 de fevereiro de 2012.
No julgamento da ADC 19, a votação foi unânime para declarar a constitucionalidade dos artigos 1º, 33 e 41 da Lei 11.340/2006. A ação foi ajuizada pela Presidência da República com o objetivo de pacificar entendimento sobre a aplicação da lei e, assim, permitir decisões uniformes em todas as instâncias do Judiciário.
O Plenário acompanhou o voto do relator, ministro Marco Aurélio, que destacou na ocasião que a lei “retirou da invisibilidade e do silêncio a vítima de hostilidades ocorridas na privacidade do lar e representou um movimento legislativo claro no sentido de assegurar às mulheres agredidas o acesso efetivo à reparação, proteção e justiça”. O ministro Ricardo Lewandowski lembrou que quando o artigo 41 da Lei Maria da Penha retirou os crimes de violência doméstica do rol dos crimes menos ofensivos e, portanto, da alçada dos Juizados Especiais, colocou-se em prática “uma política criminal com tratamento mais severo, consentâneo com sua gravidade”.
Ainda naquele julgamento, a ministra Rosa Weber disse que a Lei Maria da Penha “inaugurou uma nova fase de ações afirmativas em favor da mulher na sociedade brasileira”. No mesmo sentido, o ministro Luiz Fux disse que a lei está em consonância com a proteção que cabe ao Estado dar a cada membro da família, nos termos do parágrafo 8º do artigo 226 da Constituição Federal. O ministro Gilmar Mendes observou que o próprio princípio da igualdade contém uma proibição de discriminar e impõe ao legislador a proteção da pessoa mais frágil. Segundo ele, “não há inconstitucionalidade em legislação que dá proteção ao menor, ao adolescente, ao idoso e à mulher”. Nesse contexto, o ministro Celso de Mello, decano da Corte, lembrou que a Comissão Interamericana de Direitos Humanos teve uma importante participação no surgimento da Lei Maria da Penha.
Naquela mesma sessão, os ministros julgaram procedente a ADI 4424, ajuizada pela Procuradoria Geral da República (PGR). O artigo 16 da lei dispõe que as ações penais públicas “são condicionadas à representação da ofendida”, mas, para a maioria dos ministros do STF, essa circunstância acabava por esvaziar a proteção constitucional assegurada às mulheres. Com a decisão, o Plenário entendeu que nos crimes de lesão corporal praticados contra a mulher no ambiente doméstico, mesmo de caráter leve, o Ministério Público tem legitimidade para deflagrar ação penal contra o agressor sem necessidade de representação da vítima. Também na ocasião, os ministros entenderam que não se aplica a Lei 9.099/1995, dos Juizados Especiais, aos crimes abrangidos pela Lei Maria da Penha.
O ministro Marco Aurélio, também relator da ADI, considerou que o artigo 16 da lei fragilizava a proteção constitucional assegurada às mulheres, ao condicionar as ações penais públicas à representação da ofendida. “Não se coaduna deixar a critério da vítima a abertura ou não de processo contra o agressor”, afirmou. “Isso porque a manifestação da vontade da mulher é cerceada pela própria violência, por medo de represálias e de mais agressão”.
Para o ministro Dias Toffoli, “o Estado é partícipe da promoção da dignidade da pessoa humana, independentemente de sexo, raça e opções”. Ele fundamentou seu voto no artigo 226, parágrafo 8º, da Constituição Federal, relativo à proteção da família. Já na avaliação da ministra Cármen Lúcia, é preciso mudar conceitos sociais equivocados em relação ao direito das mulheres, como o presente na máxima “em briga de marido e mulher, não se mete a colher”. Para a ministra, é dever do Estado adentrar o recinto das “quatro paredes” quando houver violência.
Jurisprudência
A partir do julgamento da ADC 19 e da ADI 4424, o STF fixou entendimento com caráter vinculante que passou a guiar a atuação de todo o Judiciário brasileiro quanto ao tratamento que deve ser dado aos processos relacionados à violência doméstica contra a mulher.
Depois disso, chegaram à Corte, ainda, outras ações envolvendo a jurisprudência sobre a Lei Maria da Penha. Em novembro do ano passado, a ministra Cármen Lúcia julgou procedente a Reclamação (RCL) 20367 e cassou acórdão do Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJ-MG) que havia extinto a punibilidade de um condenado pela prática da contravenção de vias de fato contra mulher em ambiente doméstico, por falta de representação da vítima. A relatora determinou a realização de um novo julgamento segundo os critérios definidos pelo STF na ADI 4424.
No mesmo sentido, o ministro Marco Aurélio cassou acórdão do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJ-RS) que, em razão do desinteresse da vítima no prosseguimento da ação penal, manteve a absolvição de um homem acusado de agredir a companheira. A decisão do ministro foi tomada na Reclamação (RCL) 19525. Já o ministro Luiz Fux cassou decisão do juízo da Vara Criminal da Comarca de Limeira (SP) que havia extinto a punibilidade do acusado de ter agredido a própria mãe, em razão de renúncia à representação por parte da vítima. Ao julgar procedente a Reclamação (RCL) 18391, o relator garantiu ao Ministério Público do Estado de São Paulo o direito de prosseguir com a ação penal contra o suposto agressor. Segundo Fux, “há perfeita aderência entre o ato reclamado e os acórdãos paradigmas, posto que o Plenário do STF conferiu expressamente, com efeito erga omnes e vinculante, interpretação conforme a Constituição à Lei Maria da Penha”.
Há casos também em que ministros do STF impediram a flexibilização da Lei Maria da Penha. Um exemplo é a decisão do ministro Teori Zavascki, que, ao rejeitar Habeas Corpus (HC 130124) impetrado em favor de um condenado pela prática do crime de lesão corporal praticado em ambiente doméstico, afastou a aplicação do princípio da bagatela. Na decisão, o ministro ressaltou que, “nos delitos penais que são cometidos em situação de violência doméstica, não é admissível a aplicação do princípio da bagatela imprópria, tudo sob o pretexto de que a integridade física da mulher (bem jurídico) não pode ser tida como insignificante para a tutela do Direito Penal”.
Outro exemplo é a decisão unânime da Segunda Turma ao indeferir o HC 129446, também de relatoria do ministro Teori Zavascki, no qual se pedia a substituição da pena privativa de liberdade por sanção restritiva de direitos a um condenado à pena de três meses de detenção, em regime aberto, pelo crime de lesão corporal praticado em ambiente doméstico contra a esposa. O relator afastou a argumento de que o artigo 17 da Lei Maria da Penha autorizaria a substituição da pena. “Não parece crível imaginar que a lei, que veio justamente tutelar com maior rigor a integridade física das mulheres, teria autorizado a substituição da pena corporal, mitigando a regra do artigo 44 do Código Penal, que a proíbe”, ressaltou.
AR/AD