“Os juízes brasileiros tornaram-se permanente alvo de ataques, de tentativa de cerceamento de sua atuação constitucional e, pior, busca-se mesmo criminalizar seu agir”. O alerta foi feito pela presidente do Supremo Tribunal Federal e do Conselho Nacional de Justiça, ministra Cármen Lúcia, na manhã desta terça-feira (29) após a abertura da Sessão Extraordinária do CNJ.
“Julgar é ofício árduo. Mas é imprescindível para se viver sem que a vingança prevaleça. Sem que o mais forte imponha sua vontade e seu interesse ao mais fraco”, afirmou. “Confundir problemas, inclusive os remuneratórios, que dispõem de meios de serem resolvidos, com o abatimento da condição legítima do juiz, é atuar contra a democracia, contra a cidadania que demanda justiça, contra o Brasil que lutamos por construir”.
Segundo Cármen Lúcia, “juiz sem independência não é juiz; é carimbador de despachos, segundo interesses particulares, e não garante direitos fundamentais segundo a legislação vigente”. Sem citar nomes, ela repudiou a imputação de “todas as mazelas a um corpo profissional da Justiça que, como todo humano, sujeita-se a erros, sim, mas não tem neles a sua marca dominante, que é hoje a do trabalho”.
“Desmoraliza-se, enfim, a instituição e seus integrantes, para não se permitir que o juiz julgue, que as leis prevaleçam e que a veracidade de erros humanos seja apurada, julgada e punida, se for o caso”, alertou.
A presidente do STF e do CNJ encerrou seu pronunciamento defendendo a autonomia e independência dos poderes: “Todos nós estamos aqui trabalhando para um país mais justo, mais democrático para todos os brasileiros, e atuando rigorosamente segundo as leis do país, que juramos cumprir. Nós vamos continuar a agir dessa forma. E esperamos muito que todos os poderes da República atuem desse jeito, respeitando-nos uns aos outros e, principalmente, buscando um Brasil melhor para todo mundo”.
Lei abaixo a íntegra do pronunciamento:
Judiciário e Democracia
Cármen Lúcia Antunes Rocha
Julgar é ofício árduo. Mas é imprescindível para se viver sem que a vingança prevaleça. Sem que o mais forte imponha sua vontade e seu interesse ao mais fraco.
A superação da barbárie dá-se pela substituição do desejo animalesco de vingança pelo busca de realização da justiça.
A estrutura do poder judiciário é feita por humanos. E como próprio do humano, é imperfeita. Mas desde a concepção democrática do princípio da independência e harmonia dos poderes estatais, o Judiciário tem cumprido o papel de esteio da democracia.
Tanto parecia princípio aceito socialmente na forma acolhida constitucionalmente. Fico a pensar se me enganei ao crer que os quase noventa milhões de processos em tramitação em curso no Brasil demonstrariam a opção da sociedade pela Justiça ao invés de se palmilhar o caminho da barbárie.
Numa inegável concertação, a palavra justiça toma conta dos noticiários, dos textos romanceados, de programas de entretenimento, domina o cenário, mas os juízes brasileiros tornaram-se permanente alvo de ataques, de tentativa de cerceamento de sua atuação constitucional e, pior, busca-se mesmo criminalizar seu agir, restabelecendo-se até mesmo o que já foi apelidado de “crime de hermenêutica”.
Juiz sem independência não é juiz; é carimbador de despachos segundo interesses particulares, não garantidor de direitos fundamentais segundo a legislação vigente.
Juiz sem independência tem de vocacionar-se a mártir para ser imparcial. Porque ser imparcial impõe compromisso ético intangível e responsabilidade funcional integral.
Pergunto-me, com o Judiciário que a Constituição instituiu para o Brasil, com juízes buscando desesperadamente aperfeiçoar-se, com um Conselho Nacional de Justiça composto por membros dos poderes da República, do Ministério Público e da sociedade civil, que Judiciário o Brasil quer ter. Ou qual Judiciário algumas pessoas querem que o País tenha. Ou mesmo se querem ter um Judiciário, com os princípios de imparcialidade, independência e autonomia.
Se é desejável socialmente a democracia, é impossível – como demonstrado historicamente – recusar-se o Judiciário como estrutura autônoma e independente do Poder do Estado nacional. Não há democracia sem Judiciário. E o Judiciário somente cumpre o seu papel constitucional numa democracia. Toda ditadura começa rasgando a Constituição (ainda que sob várias formas, incluídas as subliminares de emendas mitigadoras das competências e garantias dos juízes), amordaçando os juízes (no Brasil, chegou-se à cassação de três ministros do Supremo Tribunal Federal que desagradavam os donos de poder de plantão), imputam-se todas as mazelas a um corpo profissional que, como todo humano, sujeita-se a erros, mas não tem neles a sua marca dominante, que é a do trabalho, desmoraliza-se, enfim, a instituição e seus integrantes, para não se permitir que o juiz julgue, que as leis prevaleçam e que a verdade de erros humanos sejam apurados, julgados e punidos, se for o caso.
Somente na semana passada, dedicada à conciliação e à mediação entre conflitos, foram realizadas no Brasil quase 420.000 audiências. Trabalharam os juízes e conciliadores até a meia noite para atender as demandas dos cidadãos.
Nada disso é sequer mencionado para informação dos cidadãos.
Criminalizar a jurisdição é fulminar a democracia. Há de se perguntar a quem interessa. Não ao povo, certamente. Não aos democratas, por óbvio.
Confundir problemas, incluídos os remuneratórios, que dispõem de meios de serem resolvidos e serão, com o abatimento da condição legítima do juiz, é atuar contra a democracia, contra a cidadania que demanda justiça, contra o Brasil que lutamos por construir.
Ensinava Ruy Barbosa que “nenhum tribunal, no aplicar da lei, incorre, nem pode incorrer, em responsabilidade, senão quando sentencia contra as suas disposições literais, ou quando se corrompe, julgando sob a influencia de peita ou suborno. … Fora daí não há justiça, não há magistratura, não há tribunais. …Quem quer que saiba, ao menos em confuso, dessas coisas, não ignorará que todos os juízes deste mundo gozam, como juízes, pela natureza essencial a suas funções, do benefício de não poderem incorrer em responsabilidade pela inteligência que derem às leis de que são aplicadores” (BARBOSA, Ruy – O STF na Constituição. In Escritos e Discursos Seletos. Rio de Janeiro: Gallimard, 1997, p. 557)
Justiça não é luxo, é necessidade primária para se viver com o outro. Conviver põe conflitos; viver em paz impõe Justiça.
Não somos, os juízes, senão humanos tentando muito acertar segundo a Constituição e as leis que nos são impostas. Desconstruir-nos interessa a quem? Enfraquecer-nos objetiva o que? Afinal, que Brasil temos e que Brasil queremos ter?
Com CNJ Agência de Notícias