No início da tarde desta quinta-feira (19), as partes envolvidas nos processos, as entidades interessadas admitidas pelos relatores e o procurador-geral da República, Augusto Aras, manifestaram-se sobre a possibilidade de mudança de data ou local de concurso público para candidatos que, em razão de sua crença religiosa (adventista), devem resguardar o sábado. o Tema é objeto do Recurso Extraordinário (RE) 611874 e do Recurso Extraordinário com Agravo (ARE) 1099099, com repercussão geral reconhecida, cujo julgamento, iniciado na sessão de ontem, foi retomado na de hoje.
Leitura conciliatória
O advogado-geral da União, José Levi Mello do Amaral Júnior, afirmou que a liberdade religiosa está na origem de todas as demais liberdades e tem a tolerância em sua essência, como verdadeira aceitação e acolhida do outro, sem qualquer forma de discriminação. Embora a União seja a autora do RE 611874, contra decisão que permitiu a um adventista realizar prova em data e hora diversas das estabelecidas no calendário do concurso, Levi defendeu a flexibilização das datas e uma “leitura conciliatória” da questão, a fim de evitar a repetição de litígios semelhantes.
Preconceito indireto
Em nome da professora adventista que interpôs o ARE 1099099, reprovada no estágio probatório, a advogada Patrícia Conceição Moraes afirmou que, desde a admissão, sua cliente havia solicitado que a carga horária fosse distribuída de modo a não abranger aulas noturnas às sextas-feiras e se colocado à disposição para assumir horários alternativos, mas não foi atendida. A advogada salientou que, mesmo depois de 120 anos de o Brasil ter se tornado um Estado laico, “ainda vivenciamos um preconceito indireto”, pois não é dada a um cidadão a oportunidade de se tornar funcionário público e seguir os preceitos de sua religião, “sob pena de ser considerado não apto no estágio probatório, como aconteceu na hipótese no quesito de assiduidade”.
Prestação alternativa
A advogada Maria Cláudia Bucchianeri Pinheiro, representante do candidato adventista no RE 611874, destacou que o Estado tem a obrigação de acomodar o pluralismo religioso e oferecer prestação alternativa, e lembrou que o Brasil tem a maior comunidade adventista do mundo, com mais de 2,5 milhões de membros. Apesar disso, o candidato, aprovado em primeiro lugar, não foi nomeado porque não lhe foi dada a oportunidade de fazer o exame no domingo. A advogada reconheceu, porém, que o Estado brasileiro amadureceu muito em relação à matéria, especialmente em razão do Enem, em que mais de 450 mil estudantes adventistas puderam fazer a prova em outro horário, sem gerar grande custo extra nem comprometer a higidez do certame.
Fato social e histórico
A Associação Nacional de Juristas Evangélicos (Anajure), representada por Luigi Mateus Braga, sustentou que a Constituição Federal é muito clara ao dizer que ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa e que o tema religioso em questão não se trata de doutrina, mas de um fato social. Segundo Braga, o sábado é realmente um dia muito especial para os adventistas, mas “são milhares de anos de história em que o sábado é guardado, e isso não é uma escolha apenas de quem professa essa fé”.
Dignidade dos candidatos
Em nome da Defensoria Pública do Estado de Minas Gerais (DPE-MG), Adriana Patrícia Campos Pereira destacou que a realização de provas em horário alternativo, em razão de convicções religiosas, não resulta em concessão de privilégios em detrimento dos demais candidatos, mas garante igualdade entre todos eles. Para a defensora pública, a situação não diz respeito ao simples desejo de realizar provas em dia e horário diverso dos demais candidatos. “Ela envolve questões e preceitos religiosos extremamente caros para quem os professa, constituindo uma questão diretamente ligada à dignidade de tais indivíduos”, afirmou. “Quem invoca direito de crença e consciência não coloca em risco as atividades do Estado; antes, garante a própria ordem constitucional sustentada pela própria isonomia”.
Relação de cooperação
Pela Defensoria Pública do Estado de São Paulo (DPE-SP), Fernanda Maria de Lucena Bussinger afirmou que a Constituição Federal apresenta uma relação de cooperação entre o Estado e a religião. “A existência de multivisões é que permite a formação da própria democracia pluralista”, assinalou. Segundo ela, o texto constitucional prevê expressamente exemplos em que as organizações eclesiásticas colaboram com o Estado em diversas atribuições públicas, e a concessão do pedido não fere a laicidade do Estado, “que impõe a neutralidade, de forma que nenhuma decisão seja tomada com incidência direta das religiões, mas não exige indiferença em relação a todas elas”.
Não discriminação
A Confederação Israelita do Brasil (Conib) foi representada por Fernando Lottenberg, segundo o qual a questão tratada nos recursos não diz respeito apenas às minorias, mas à própria sociedade brasileira. “Permitir que um servidor público seja exonerado nas condições aqui tratadas abre as portas para um comportamento discriminatório”, avaliou. Lottenberg defendeu que a crença de que determinado dia é sagrado, “é plenamente legítima dentro da concepção de liberdade” e observou que há proteção constitucional para que esse dia seja respeitado, como já ocorre no Enem. O representante exemplificou que a Lei 13.796/2019 a Lei de Diretrizes e Bases (LDB) para impor às instituições de ensino a obrigação de ofertarem medidas alternativas aos seus alunos.
Laicidade e isonomia
O procurador-geral da República (PGR), Augusto Aras, fez considerações sobre a laicidade do Estado e os princípio da isonomia e da impessoalidade, valores constitucionais a serem harmonizados no caso. Segundo o procurador, a laicidade impõe ao Estado o dever de neutralidade em relação às diferenças crenças religiosas, “como uma garantia que salvaguarda indivíduos de ações estatais que possam prejudicar ou beneficiar adeptos de determinada crença religiosa”. Quanto ao princípio da isonomia, afirmou que o Estado não pode criar distinções entre brasileiros em razão de opção religiosa.
Aras se manifestou pelo desprovimento do RE da União, embora reconheça que o direito fundamental à liberdade de crença religiosa, por si só, não impõe ao Estado a obrigação de realizar etapas de concurso público em dias distintos por motivo de crença religiosa. O PGR acredita que a comissão de concurso pode adotar essa prática quando não configurar violação à laicidade, à isonomia e à impessoalidade. Em relação ao ARE, ele opinou pelo provimento do recurso para que a servidora seja reintegrada ao cargo de professora e para que o gestor local examine a possibilidade de obrigação alternativa.
EC//CF
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